Tom Peters entrevista Ray Kurzweil sobre o futuro das máquinas

31/07/2006 às 04:05

Não é todo dia que uma máquina de idéias se encontra com outra máquina de idéias. Quando duas máquinas desse tipo interagem, é grande a probabilidade de ocorrer um curto-circuito de proporções desconhecidas. Ou podem abrir-se novos horizontes de pensamento.


Transcrevo abaixo partes da entrevista que o inovador especialista em gestão Tom Peters fez com o inventor norte-americano Ray Kurzweil, publicada na revista HSM Management (ed. 57, julho-agosto 2006).

O que é a singularidade de que você tanto fala?

É uma metáfora emprestada do campo da física e designa um horizonte de acontecimentos no qual é difícil ver mais além. Na física, trata-se de um horizonte de acontecimentos físicos que cercam um buraco negro. Em nosso caso, estamos falando de fatos futuros na história da humanidade, que serão tão profundamente transformadores que a análise se torna bastante difícil. Envolve a ampliação de nossa inteligência por meio da fusão com as formas não-biológicas que estamos criando.

São muitos os passos para conseguir compreender esse processo. O primeiro é a recriação em máquina da inteligência humana, com todas suas sutilezas, flexibilidade, capacidade de reconhecimento de padrões e inteligência emocional, entre outros fatores. Para isso, será preciso envolver tanto o hard­ware como o software.

Então vamos começar pelo lado "hardware" da inteligência humana. Quando você fala em "hardware", está referindo-se ao cérebro humano?

Exatamente, refiro-me à memória e à capacidade de processamento do cérebro humano. Tenho diversas análises de pessoas diferentes, inclusive de mim, que mostram que é preciso atingir uma capacidade de cálculo entre 1014 e 1016 por segundo para recriar funcionalmente a capacidade do cérebro humano. Assim, para estimular de modo realista todas as áreas do cérebro humano (várias centenas delas), precisaremos contar com essa capacidade em um computador. Isso será atingido no final desta década com o supercomputador, e em 2020 tal capacidade estará presente em um equipamento que custará por volta de US$ 1 mil.

A questão seguinte envolve os softwares, pois sem eles não teríamos mais do que calculadoras de alta velocidade. Temos de entender os princípios do funcionamento da inteligência humana e, para isso, estamos envolvidos em outro projeto grandioso, que é a engenharia reversa do cérebro humano. A situação é similar à do Projeto Genoma uma década atrás, o que quer dizer que se vem ampliando em ritmo exponencial. Fizemos mais progressos do que as pessoas podem imaginar.

Estamos apenas obtendo as ferramentas para realizar a tarefa. Pela primeira vez, os scanners de cérebro apresentam resolução alta o bastante para vermos os sinais individuais das conexões interneuroniais em tempo real. Até pouco tempo, tecnologias como a da fMRI [abreviação de functional magnetic resonance imaging, ou imagem por ressonância magnética funcional] só conseguiam mostrar grandes grupos de células.
Agora, estamos conseguindo dados detalhados e mostrando que podemos transformálos em reproduções e simulações. Quinze regiões do córtex auditivo foram reproduzidas e simuladas em um computador, por exemplo. Há também uma simulação do cerebelo, que é onde se formam nossas habilidades e que abriga mais da metade dos neurônios existentes no cérebro. Assim, o progresso já é maior do que as pessoas conseguem perceber.

Então, no longo prazo acontecerão mais coisas do que podemos supor...

Sim. As pessoas estão fazendo projeções de modo linear para o futuro. É um erro. Em meu livro, eu abordo a diferença radical entre a tendência exponencial e a linear. Faz parte da intuição humana achar que o progresso será linear, ou seja, seguirá no ritmo atual. Mas o ritmo do progresso está acelerando-se e a ampliação das ferramentas em todas as áreas (informática, comunicações, compreensão do cérebro e da biologia humanos) dobra todo ano. A tecnologia da informação já afeta profundamente diversos aspectos de nossa vida e, se você imaginá-la multiplicada por 1 bilhão nos próximos 25 anos, verá uma transformação imensa.

Em 2020 já deverá haver estruturas de software com os princípios de funcionamento de todas as regiões do cérebro. Seremos capazes de aplicar esses padrões aos computadores, e, em 2029, estes serão milhares de vezes mais poderosos do que o cérebro humano.

Que tem de tão importante colocar a inteligência humana em uma máquina?

Poderemos combinar as atuais vantagens da inteligência humana, sobretudo nossa capacidade de reconhecimento de padrões, com os aspectos nos quais as máquinas nos superam. Os computadores conseguem partilhar seu conhecimento a velocidades eletrônicas, por exemplo.

Hoje precisamos de anos para transferir o conhecimento para cada criança. Mas, com os recursos da inteligência não-biológica, é possível apenas fazer o d­ownload­ dos padrões de um computador que aprendeu as lições. Além disso, os computadores sempre poderão ampliar-se. Tanto o hard­ware como o software continuarão a evoluir de forma intensa, enquanto a inteligência humana, em si, permanecerá fixa.

Mas por que a inteligência humana é fixa? O tamanho do cérebro constitui uma limitação?

O cérebro humano é limitado pelo tamanho e, mais importante, pelo paradigma do uso de sinais, de gradientes químicos que se deslocam a poucas centenas de centímetros por segundo, o que é milhões de vezes mais lento do que a velocidade eletrônica.

O cérebro não consegue reprojetar-se de modo a incorporar um método de informação 1 milhão de vezes mais veloz. É claro que no limite faremos exatamente isso – mas por meio da tecnologia, e não da biologia. De acordo com minhas estimativas, temos uma capacidade de cálculo de 1026 por segundo nos mais de 6,5 bilhões de seres humanos. Daqui a meio século, a parte biológica de nossa inteligência ainda será de 1026, mas a porção não-biológica será imensamente maior, porque está crescendo a uma proporção de mais de mil por década.

Podemos dizer que a parte não-biológica de nossa inteligência excederá em grande medida a porção biológica. Situei a singularidade em 2045, porque nesse momento a [capacidadeda] parte não-biológica [do homem] será 1 bilhão de vezes maior do que toda a porção biológica. Trata-se de uma mudança profundamente transformadora. De acordo com meu modo de pensar, ainda assim será inteligência humana. Não gosto do termo "transumano", porque pressupõe ultrapassar o aspecto humano e, em minha opinião, ainda estamos falando da civilização humana. é "transbiológico": meu livro fala sobre a superação da biologia, e não de nossa humanidade.

Importante: não se trata de uma invasão alienígena de máquinas inteligentes. Os computadores já são parte muito importante de nossa civilização. Se todos os programas de inteligência artificial do mundo fossem interrompidos amanhã, nossa civilização entraria em colapso: não seria possível retirar dinheiro do banco e todos os sistemas de transporte e de comunicações seriam interrompidos.

Seu livro é assustador em certa medida, mas acredito que você fundamenta bem sua teoria. A singularidade se parece com alguma coisa que já conhecemos? Trata-se apenas de um grupo seleto de pessoas?

Não se trata de um grupo seleto. Se olharmos o que acontece com a tecnologia hoje, veremos que apenas os mais ricos conseguem bancar as novidades assim que elas surgem, quando nem sempre funcionam bem. Alguns anos depois, tudo funciona um pouco melhor e ainda custa caro, mas já é mais acessível para maior número de pessoas. Com o passar do tempo, a tendência é custar menos e funcionar melhor.

Então, os usuários de primeira hora, singulares, de certo modo são cobaias...

Isso mesmo, e em geral em um momento muito experimental. Veja só como os telefones celulares custam menos hoje. No caso dos países asiáticos, o Banco Mundial estimou que a pobreza no continente caiu pela metade e terá uma redução de 90% na próxima década. Em muitos desses países, que hoje constituem prósperas economias baseadas na informação, há 15 anos a maioria da população puxava arado.

Certo, porém essa não parece ser a percepção geral...

A percepção geral está errada.

Mas certamente essa é uma das barreiras que você vem encontrando em relação a suas teorias, certo? A percepção das pessoas em relação ao que você diz...

Em geral, existe uma espécie de percepção anômala em relação às máquinas, mas ao mesmo tempo há forte crença no progresso e na capacidade de solução de problemas atribuída à tecnologia. As duas reações ocorrem simultaneamente. O processo de transformação de uma tecnologia nova e cara em uma commod­ity de preço baixo e acesso fácil hoje leva dez anos, mas daqui a uma década bastarão cinco anos e, em 20 anos, apenas dois ou três.

Isso está relacionado com outra tendência da duplicação do ritmo de mudança dos paradigmas a cada década. Essas tecnologias se transformarão com muita velocidade. Vejamos o caso dos medicamentos antiaids, uma tecnologia da informação. Há 15 anos, o gasto anual com medicamentos (que não funcionavam muito bem) era de US$ 30 mil por paciente. O valor hoje é de US$ 100 nos países pobres, e o tratamento é eficaz.

Esta conversa me faz lembrar de uma cena do filme "Matrix", na qual Trinity precisa pilotar um helicóptero, mas não sabe fazer isso. Rapidamente, ela "baixa" as informações para pilotar o aparelho. Isso faz parte da singularidade? Trata-se de uma semi-realidade possível para 2050?

Deixando de lado as anomalias, esse filme apresentou, sim, uma série de conceitos que fazem sentido. A idéia básica de uma imersão total na realidade virtual é bastante realista. Você me perguntou com o que a singularidade pode ser comparada. Para quem participar dela, será algo fantástico, porque uma das aplicações dos nanorrobôs no cérebro será a imersão completa na realidade virtual dentro do sistema nervoso. Se você quiser entrar em um ambiente virtual, os nanorrobôs "desligarão" os sinais vindos dos sentidos naturais e os substituirão por sinais do ambiente virtual. Para seu cérebro, será como se você estivesse no ambiente virtual, no qual você poderá ser um ator.

A criação dos ambientes de realidade virtual será uma nova forma de arte: alguns terão inspiração no mundo que conhecemos, como uma praia do mar Mediterrâneo, mas outros serão pura fantasia. As pessoas poderão ter um corpo diferente e não terão de ser quem de fato são.

E será possível recorrer ao botão de "deletar" se as coisas começarem a dar errado, certo?

Isso mesmo, o que é uma grande vantagem. Poderemos interromper uma chamada telefônica, que é realidade virtual auditiva. Assim, o sexo virtual é mais seguro – por exemplo, não há riscos de doenças sexualmente transmissíveis ou de gravidez e, no caso de violência ou de outras dificuldades, pode-se abandonar a experiência. Sempre haverá esses "nichos de segurança".

Muito provavelmente passaremos grande parte do tempo nesses ambientes de realidade virtual. Se contarmos com a nanotecnologia plena e conseguirmos criar as coisas físicas com grande velocidade, também poderemos trazer parte dessas habilidades de adaptação veloz para a realidade.

E o que você me diz sobre a possibilidade de uma imensa descontinuidade?

Bem, eu me preocupo com os riscos existenciais dos aspectos negativos dessas tecnologias. O capítulo 8 do livro trata da promessa e dos perigos da genética, nanotecnologia e robótica. Tem havido muita discussão sobre os perigos da bioengenharia e da nanotecnologia de auto-replicação. Abordei esses assuntos em 1999, no livro "The Age of Spiritual Machines", e a revista Wired­ fez uma matéria de capa em reação ao livro, intitulada "Por que o futuro não precisa de nós". Também escrevi recentemente um artigo para o New York Times criticando a publicação do genoma da gripe de 1918, porque seria mais fácil recriar a enfermidade do que construir uma bomba atômica: a tarefa não exige materiais raros como o plutônio.

Seria uma interpretação utópica demais achar que tudo transcorrerá sem sobressaltos. Até hoje nada foi assim, certo?

Exatamente. Mas também vale lembrar que essas grandes rupturas não impediram os avanços tecnológicos. Cinqüenta milhões de pessoas morreram na Segunda Guerra Mundial, porém o crescimento exponencial da relação preço–lucro (PL) das empresas transcorreu tranqüilamente no decorrer de todo o século, enfrentando altos e baixos, mais ou menos possibilidades, depressões e booms, períodos de guerra e de paz.

Tendo a pensar que somos uma espécie bélica. Com a singularidade, isso poderá mudar ou o que mudará serão os motivos dos conflitos?

Não afirmo que conseguiremos ficar livres de todos os conflitos. Acredito que teremos mais conhecimento de nós mesmos e seremos capazes de identificar algumas fontes de disfunções humanas, mas não creio que isso nos livre de todas as disputas.

Eu realmente acredito que os conflitos humanos estejam diminuindo. Podemos não ter essa impressão porque hoje percebemos os conflitos com mais sensibilidade. Na Segunda Guerra Mundial, 20 mil pessoas podiam morrer em uma batalha e talvez duas semanas depois alguma imagem pouco definida do episódio chegasse a algum cinema. Hoje temos imagens em tempo real de tudo que acontece. Existem estudos que mostram que as guerras estão diminuindo, e acho que isso ocorre porque toda essa comunicação eletrônica descentralizada contribui bastante para a democracia.

Quando abordei o assunto no livro "The Age of Intelligent Machines", previ o colapso da União Soviética porque as autoridades não seriam capazes de controlar a informação. Na realidade, o golpe contra Gorbachev em 1991 fracassou graças a essa rede clandestina de aparelhos de fax e e-mails em contraposição às máquinas de telex. Controlar as estações de rádio e a TV centralizada não bastava mais para manter as pessoas alheias ao que ocorria. E essa rede de comunicação cresceu imensamente com a internet e os blogs. Hoje existem milhões de blogs, até mesmo na China.

Participei recentemente de uma conferência na qual Rebecca McKinnon, estudiosa da Harvard University, ressaltou que todos os mecanismos de busca de internet chineses operam com censura prévia. Se alguém estiver na China e procurar por "Praça da Paz Celestial", não obterá nenhum resultado...

É verdade, mas é uma censura marginal.

De certa maneira, a especialista vê o fenômeno se espalhar porque atualmente empresas norteamericanas estão desenvolvendo programas para o mercado chinês e incluindo os mecanismos de censura neles. Ou seja, de certa maneira, a prática está tornando-se parte do código-base...

Mas isso não equivale a interromper o fluxo de comunicação.

Não sei se é bem assim...

Existe certa informação "delicada", que as pessoas compreendem que não podem divulgar, mas o que isso representa? É 1% do que é dito? Isso não basta para alterar o fluxo da democratização, esse enorme poder da comunicação descentralizada. Eles não estão detendo os avanços da internet, mas apenas impondo censura a algumas questões.

E você não considera isso grave?

Com certeza eu não apóio isso, mas não vejo como um fator capaz de frear realmente a natureza dessa tendência.

E isso basta...

Outro assunto que as pessoas debatem é o das células-tronco. A oposição do governo [dos EUA] tem conseguido interromper o processo da biotecnologia? Não! Acho que é bastante parecido. Há pedras no rio, mas elas não impedem a passagem da água. Até na restrita área da biotecnologia chamada de "transdiferenciação", que é a essência da questão das células-tronco, tem havido um progresso imenso. Sou favorável às pesquisas e contrário às proibições, mas, deixando de lado os aspectos éticos e políticos, não queremos usar as células-tronco embriônicas de qualquer maneira, porque existem poucas delas e o DNA não combina com o receptor. Eu quero que se criem células pluripotentes a partir das células de minha pele, processo que foi demonstrado recentemente. A questão é que a oposição às pesquisas sobre células-tronco não está obstruindo os progressos na biotecnologia.

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